Análise da literacia digital de estudantes e trabalhadores da área da saúde

Contexto

Para a Política Nacional de Alfabetização (PNA) (1), literacia é o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados à leitura e à escrita, assim como sua prática produtiva. Em 1997 o conceito de literacia digital foi popularizado por Paul Gilster que a definiu como a capacidade para compreender, avaliar e integrar informações em diferentes formatos por meio do computador (2). Em 2019 o DQ Institute, Cingapura, realizou uma extensa revisão sistemática do tema e apresentou um framework sobre literacia digital (3), definindo-a como a habilidade em encontrar, ler, avaliar, sintetizar, criar, adaptar e compartilhar informação, mídia e tecnologia, e propôs o desenvolvimento do conceito de quociente de inteligência digital como sendo uma evolução dos conceitos de quociente de inteligência e quociente de inteligência emocional. Por outro lado, em 2020 o Ministério da Saúde atualizou sua Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028 (ES28) (4), descrevendo entre seus pilares de desenvolvimento a área de infraestrutura e recursos humanos, considerando objetivos como ampliação do acesso à atenção básica de saúde por meio do uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs), a qualificação das equipes de saúde com promoção de educação permanente por meio de instrumentos de educação a distância (EaD), definição de perfil profissional de saúde digital e de uma matriz de competências com ênfase na valorização do profissional de saúde e na melhoria do atendimento para o paciente.

Objetivo

Realizar uma análise da literacia digital de estudantes e trabalhadores da saúde para identificar os respectivos perfis de competência digital e estabelecer uma escala de valores para sua mensuração. Os objetivos específicos foram: a) construir um instrumento do tipo teste que possibilitasse aos estudantes e trabalhadores da saúde identificar seu perfil atual de literacia digital; b) realizar experimentos com estudantes e trabalhadores da saúde e avaliar os resultados obtidos em cada perfil de literacia digital dos trabalhadores da saúde.

Fundamentos

A fase 2, realizada entre 2019 e 2022, foi baseada no projeto de mestrado de Gilberto Vieira Branco no Programa de Pós-graduação em Gestão e Informática em Saúde da UNIFESP, focado em literacia digital em saúde de estudantes e trabalhadores da saúde (5). Nesta fase, adotou-se como fundamentação teórica o conceito de inteligência digital em saúde proveniente do framework sobre literacia digital (3) do DQ Institute, Cingapura, fundamentado em uma matriz de competências baseada em 25 iniciativas globais de literacia digital de instituições como British Columbia, Microsoft, Mozilla, OCDE, The Open University, UNESCO etc. Traduções e adaptações foram realizadas para o contexto brasileiro. Como o framework original não inclui questões para um teste de avaliação, foram elaboradas questões para o Teste IDs usando a escala de Likert (6). A técnica de grupo focal (7) foi usada para aprovação do modelo elaborado, análise de sensibilidade das questões e desenvolvimento de hipóteses. A implementação do instrumento web teve como base a linguagem em PHP e banco de dados MySQL, com identificação automática dos respondentes redirecionados do ambiente virtual de aprendizagem Moodle. Os resultados foram analisados por estatística descritiva (8) e para identificação de grupos de participantes com respostas semelhantes foi usado o método K-means (9). A coleta, o armazenamento e a divulgação de dados respeitam diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) (10). Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP projeto n0 0155/2019 registrado na Plataforma Brasil CAAE 08323418.4.0000.5505.

Resultados

Nesta fase, iniciada no ano de 2019, o objetivo foi propor um instrumento para avaliar não somente o nível da literacia digital, mas sim aspectos capazes de abranger o ambiente e a vivência digital. Além disso, o público-alvo tornou-se mais amplo porque, além de estudantes, foram contemplados profissionais voltados à atenção em saúde e em harmonia com os preceitos da ESD. Na fase 2 o teste passou a ser denominado Teste de Inteligência Digital em Saúde (IDs) para caracterizar a avaliação de diversas habilidades digitais do estudante e do profissional, focando na autorreflexão do respondente e apresentando uma abordagem de um teste psicométrico, de avaliação de competências. Este teste não representa um exame porque suas respostas não são consideradas certas ou erradas. As competências do Teste IDs foram organizadas em oito áreas de desenvolvimento e nomeadas da seguinte maneira: identidade digital, uso digital, prote-ção digital, segurança digital, inteligência emocional digital, comunicação digital, literacia digital e direito digital. Cada competência oferece três dimensões de conhecimentos, habilidades e atitudes e valores (CHA): cidadania digital, criatividade digital e competitividade digital, em conformidade com o framework de literacia digital, habilidades e prontidão do DQ Institute (3).

Após responder ao questionário online do teste, um relatório final apresenta uma análise de sinastria (11), com valores percentuais para indicadores de literacia digital geral, competência em literacia digital midiática e informacional (associada ao perfil de cidadania digital), competência em criação de conteúdos e literacia computacional (associada ao perfil de criatividade digital), e competência em literacia em dados e inteligência artificial (associada ao perfil de competitividade digital). O resultado também inclui um relacionamento entre os aspectos fortes, fracos, não aplicáveis e não compreendidos decorrentes das respostas apresentadas. O relatório com a sinastria digital resultante também apresenta uma seção na qual o respondente pode enviar sua avaliação pessoal dos resultados.

O Teste IDs versão alpha aborda apenas a área de literacia digital do framework, possui 44 afirmações categorizadas em CHA e tem duração de cerca de 30 minutos. Em sua primeira aplicação foram obtidos 292 respondentes válidos, voluntários, estudantes do Curso EaD de Especialização em Informática em Saúde da UNIFESP, 6a edição, que tiveram acesso ao relatório com sua sinastria em literacia digital em saúde. O Teste IDs versão alpha teve boa aceitação entre os respondentes. Entretanto, entre os pontos de melhoria indicados pelos respondentes havia a percepção de que as afirmações não apresentavam uma caracterização clara da área da saúde.

Após nova rodada de estudos entre os pesquisadores foi possível elaborar uma nova versão, denominada Teste IDs versão beta, que encontra-se disponível em https://ids.saude360.app.br (Figura 1). O teste contém agora 56 afirmações, com respectivos exemplos, e considerando duas grandes áreas de atuação do respondente, sendo uma não relacionada à saúde e a outra relacionada à saúde, com 79 subáreas da saúde provenientes da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO)(12). O Teste IDs versão beta teve sua primeira aplicação de forma ampla, realizada por convite para os estudantes do curso de especialização, membros da Rede Universitária de Telemedicina (RUTE), participantes dos grupos de trabalho da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e por meio de divulgação em redes sociais como Linkedin, Facebook e Instagram para trabalhadores da saúde, durante os meses de maio a julho de 2021. Na primeira aplicação participaram 79 respondentes, voluntários, que tiveram acesso ao relatório de sinastria digital (Figura 2) com apresentação de gráficos dinâmicos e um questionário de avaliação dos resultados obtidos. O maior grupo identificado foi de respondentes com atuação em enfermagem (n=19) com 76% de média atingida, seguido pelo grupo de profissionais da medicina (n=11) com 75% de média atingida. Dos estudantes do curso de especialização convidados a realizarem novamente o Teste IDs, 31 responderam em sua totalidade indicando uma evolução positiva do nível individual de literacia digital em saúde em 81% dos respondentes.

Em relação à aplicação do Teste IDs no curso de especialização, foram identificados benefícios motivacionais e técnicos relacionados à forma como o estudante entendeu os diversos aspectos das competências necessárias para a sua atuação profissional, além de ter sido um mecanismo de incentivo ao desenvolvimento pessoal e profissional. Notou-se que funcionou como elemento de comparação dos resultados obtidos entre os próprios alunos, o que favoreceu o engajamento e facilitou o relacionamento no curso. Outro benefício identificado está relacionado aos resultados obtidos na reaplicação do teste. Foi possível verificar o aumento dos percentuais globais obtidos quando comparados os resultados do teste realizado no início do curso com os resultados obtidos no teste realizado ao final do curso.

Em suma, o Teste IDs versão alpha resultou em uma literacia digital em saúde global média de 74,7% com 292 respondentes, estudantes do curso de especialização (mediana 76,4%; mínimo 27,0%; máximo 100%). Já o Teste IDs versão beta resultou 74,6% global com 79 respondentes iniciais sendo profissionais de saúde (mediana 77,0%; mínimo 19,0%; máximo 99,0%). Até 30 de maio de 2024 o Teste IDs versão beta possui 602 testes realizados integralmente, conforme ilustrado pelo histograma na Figura 3.


Figura 1. Teste IDs fase 2 de 2019-2022 (IDs beta). (a) Tela de entrada. (b) Tela com uma questão do teste.



Figura 2. Teste IDs fase 2 de 2019-2022 (IDs beta). (a) Tela inicial do relatório. (b) Tela com parte do relatório.



Figura 3. Histograma do resultado da literacia digital de 602 respondentes do Teste IDs versão beta até 30 de maio de 2024.

Situação

A versão alpha do Teste IDs encontra-se suspensa para uso público. A versão beta do Teste IDs encontra disponível em https://ids.saude360.app.br. Esta versão permanecerá disponível para uso público até o lançamento da próxima versão previsto para novembro de 2024.

Equipe

Prof. Dr. Ivan Torres Pisa, UNIFESP (orientação)
Prof. Dr. Paulo Roberto de Lima Lopes, RUTE/RNP (coorientação)
Prof. Gilberto Vieira Branco, mestrando UNIFESP

Referências

1. Brasil. Ministério da Educação. Política Nacional de Alfabetização (PNA). Decreto nº 9.765, de 11 de abril de 2019. Brasília: Ministério da Educação. 2019 [citado 14 de maio 2024]. Disponível em: https://alfabetizacao.mec.gov.br.
2. Pool C. A conversation with Paul Gilster. Educational Leadership. 2019:55(3), 6–11.
3. DQ Institute. DQ Global Standards Report 2019 - Common Framework for Digital Literacy, Skills and Readiness. Singapura: DQ Institute [Internet]. 2019 [cited 2024 May 5]. Available from: https://www.dqinstitute.org/wp-content/uploads/2019/11/DQGlobalStandardsReport2019.pdf.
4. Brasil. Ministério da Saúde. Estratégia de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde. 2020 [citado em 14 mai 2024]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/estrategia_saude_digital _Brasil.pdf.
5. Branco GV. Análise da literacia digital de estudantes e trabalhadores da área da saúde. 2022. 106f. Dissertação (Mestrado em Ciências, Área de Gestão e Informática em Saúde) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2022. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/65819.
6. Likert R. A technique for the measurement of attitudes. Archives of Psychology. 1932; 22:5-55.
7. Morgan DL. Focus groups. Annu. Rev. Sociol. 1996;22:129-52.
8. Triola MF. Elementary Statistics. 13a ed. Boston: Pearson; 2018.
9. Hartigan JA, Wong MA. Algorithm AS 136: A k-means clustering algorithm. J R Stat Soc [Ser C Appl Stat]. 1979;28(1):100-8.
10. Brasil. Ministério da Saúde. Lei Nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Redação dada pela Lei Nº 13.853 de 2019. [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde. 2019 [citado14 mai 2024]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Ato2019-2022/2019/Lei/L13853.htm.
11. Sinastria. Wikipédia, a enciclopédia livre [Internet]. [citado 14 mai2024]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sinastria.
12. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Portaria ministerial nº. 397, de 9 de outubro de 2002 [Internet]. Brasília: Ministério do Tra-balho e Emprego. 2002 [citado 14 mai 2024]. Disponível em: https://www.mtecbo.gov.br /cbosite.